Hesitação e recusa vacinal como trama discursiva: estratégias de resistência à imunização na pandemia de covid-19
DOI:
https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.12971Palavras-chave:
Hesitação vacinal, Recusa de Vacinação, Antivacina, Biopolítica, COVID-19, Análise do discursoResumo
A hesitação vacinal, amplamente estudada enquanto fenômeno de saúde pública, é frequentemente reduzida ao efeito da desinformação ou da influência das chamadas fake news. No entanto, mais do que um chamado equívoco informacional, a hesitação e recusa vacinal pode ser compreendida como uma trama discursiva estruturada, composta por enunciados que conferem legitimidade à recusa ou ao questionamento da imunização. Este artigo, baseado integralmente em minha dissertação de mestrado, inscreve-se no horizonte da biopolítica foucaultiana para analisar as camadas que emergem nos discursos de hesitação e recusa vacinal no Brasil durante a pandemia de covid-19. Os objetivos específicos da pesquisa foram: i) investigar discursos e práticas de vacinação no país; ii) descrever como a pandemia e seus desdobramentos atravessam os enunciados antivacinação; iii) discutir o mundo social da vacinação em tempos de crise sanitária; e iv) delimitar aproximações e diferenças entre hesitação e recusa vacinal. O corpus é composto por postagens realizadas em dois grupos do Facebook que conectavam sujeitos parcial ou totalmente contrários à vacinação. As publicações foram identificadas por meio da busca pelo termo “covid” e selecionadas pelo número de interações, a fim de mitigar enviesamentos curatoriais, considerando que, nas redes, a validação tecnodiscursiva mobiliza regimes de visibilidade e autoridade. A hipótese central sustenta que os discursos contrários à vacinação, com frequência reduzidos à “falta de informação” ou explicados apenas pela circulação de fake news, configuram uma trama discursiva complexa, em que enunciados heterogêneos se articulam na (re)produção de subjetividades e na reordenação de critérios de verdade. A hipótese secundária indica que o esforço por ampliar coberturas vacinais requer reconhecer a insuficiência — quando não a ausência — de discussões públicas consistentes sobre farmacovigilância nos discursos institucionais e midiáticos, dimensão que impacta expectativas, crenças e confiança. A análise identificou quatro estratégias discursivas recorrentes: i) assunção de uma moralidade cristã que sacraliza o corpo e desloca a proteção para o âmbito da fé; ii) assunção de discursos de “saúde alternativa”, que ressignificam prevenção e imunidade como autocuidado natural, fora da mediação estatal-biomédica; iii) negação das instituições (Estado, órgãos sanitários, mídia, judiciário), por meio da deslegitimação de suas práticas e decisões; e iv) contestação do discurso científico e mercadológico da indústria químico-farmacêutica, que reinterpreta a vacinação como experimento em massa e risco ampliado. Essas estratégias não operam isoladamente: compõem intersecções e sobreposições dinâmicas, reorganizadas a cada novo acontecimento discursivo, produzindo uma economia de suspeição que desloca a vacina do eixo cuidado/solidariedade para o eixo risco/sujeição. Conclui-se que simplificar tais discursos — reduzindo-os a ignorância ou equívoco informacional — tende a reforçar a própria hesitação e recusa. Enfrentá-los demanda estratégias comunicacionais dialógicas, transparentes e sensíveis às pertenças morais e comunitárias, bem como à publicização de rotinas de farmacovigilância, de modo a reinscrever a vacinação em circuitos de confiança e cuidado partilhado.
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